segunda-feira, abril 21, 2008

Caça ao consumidor-traficante

Os traficantes vestem a pele de cordeiro e fazem-se passar por consumidores para ficarem livres da Polícia e dos tribunais. O tráfico de estupefacientes tem ganho a batalha contra as autoridades policiais, a avaliar pela escalada da violência associada ao fenómeno da droga, através dos crimes contra o património, como roubos e furtos. Mas será que criminalizar o consumo de drogas vem resolver todo este problema causado pelo tráfico de estupefacientes? "Assim não vamos lá, é preciso dizer basta". Esta é a convicção de Rafaela Fernandes, que quer ressuscitar a lei da criminalização do consumo de droga, revogada há oito anos. O diploma legislativo regional que será aprovado pela maioria parlamentar na Madeira tem dois objectivos chave: tirar a pele de consumidores aos pequenos traficantes e reduzir o caudal de crimes contra o património.
"Se os tais pombos-correio que circulam nas ruas forem apanhados, e estamos a falar também daqueles que estão a traficar numa escala acima deles, esta é uma lei que claramente vem apoiar medidas de combate ao tráfico", sublinha Rafaela Fernandes, deputada do PSD na Assembleia Legislativa da Madeira e vice-presidente da 5ª Comissão Especializada de Saúde e Assuntos Sociais, que elaborou o diploma.
A proposta de criminalização do consumo de drogas que o PSD-M vai levar à Assembleia da República é simples: revogar a Lei n.º 30/2000, aprovada pelo Governo de António Guterres e fazer vigorar o artigo 40.º do decreto-lei n.º 13, de 1993.
A bancada parlamentar do PSD tem esperanças de que o diploma passe em São Bento, onde a maioria tem cor rosa. "É uma aspiração legítima da RAM e não há lei nenhuma que diga que a Madeira tenha de ter um regime igual ao país inteiro e sobretudo porque a matéria da droga é um fenómeno social com impacto".
A iniciativa legislativa não caiu nas graças da oposição e está longe de gerar consenso. A esquerda fala em perseguição aos toxicodependentes e entende que estes deveriam ser, antes de tudo, considerados e tratados como doentes. O PSD faz do caso da Holanda um exemplo a evitar: após a liberalização do consumo das chamadas drogas leves, o país das papoilas pondera seriamente fazer marcha atrás.
Rafaela Fernandes só tem certeza de uma coisa: a lei actual é insuficiente para alterar o estado de coisas. Os social-democratas estão apostados em reduzir não só a oferta mas, também, a procura de droga na Madeira. Como? Dando mais autoridade às polícias para conseguirem deter consumidores e os pequenos traficantes e obrigando os toxicodependentes a cumprirem programas de tratamento sob pena de serem sancionados.
As polícias, os tribunais, a Reinserção Social e a prisão passariam a ser figuras bastiãs que funcionariam com um maior pendor repressivo.
"Quando se faz esta alteração da lei cada vez mais se reforça a possibilidade de resolver dois problemas que este quadro legal veio criar: o primeiro é a abertura legal para os traficantes circularem na pele de consumidores; o segundo é conseguirmos garantir que esses toxicodependentes, que são doentes, é verdade, mas que tenham a possibilidade de deixar de ter esta oferta à volta deles para também poderem aderir a programas de tratamento, quase que obrigados é verdade, mas no fundo é para o bem deles".
Droga é uma caixa de chocolates.
A lei em vigor (n.º 30/2000) impede as polícias de darem ordem de detenção a indivíduos que estejam na posse de doses médias individuais para um período de 10 dias (antes era para cinco dias), já que a lei não os considera alegados traficantes.
"Aumentar para o dobro, isso não cabe na cabeça de ninguém! Este conforto da lei veio criar uma abertura para que o tráfico se intensificasse", observa Rafaela Fernandes. "Ora, para quem percebe minimamente, não há toxicodependente nenhum que aguente as doses médias diárias para dez dias sem que as consuma ou dê a alguém", complementa.
A deputada do PSD lembra a alusão "feliz" de um médico: "O consumo de droga é quase como o consumo de chocolates, se nós tivermos uma caixa de chocolates não descansamos enquanto a caixa não chegar ao fim". Também os agentes da PSP já se aperceberam que a rede de traficantes conhece de cor quanto cada 'correio' pode transportar para traficar sem ser detido. O sistema está de tal modo viciado que há deles, já referenciados, que são revistados de manhã e à tarde voltam a ser detectados na posse de droga. "Não é possível, além de que não há toxicodependente nenhum a circular na rua com dinheiro suficiente para comprar doses para dez dias, portanto, alguma coisa está a bater mal", aponta Rafaela Fernandes.
A deputada 'laranja' diz que a criminalização do consumo de estupefacientes não é uma perseguição, mas antes uma motivação legal para que os toxicodependentes se corrijam social e individualmente.
"Deixemo-nos de hipocrisias: ninguém quer mandar os toxicodependente para a cadeia, porque aqueles que não consomem, sabendo que é crime, nem se vão atrever a consumir; os que já consomem de vez em quando vão começar a pensar duas vezes e os que são toxicodependentes mesmo têm a oportunidade de se tratar cá fora ou no Estabelecimento Prisional do Funchal, onde já há uma boa percentagem de reclusos a cumprirem programas de tratamento".
Os tribunais-persuasores
Levar os consumidores a tribunal é um factor persuasor. Não é apenas uma questão de formalismo ou da figura do juiz. A decisão judicial terá em conta se o arguido é um mero consumidor ocasional ou se é reincidente. A pena ou coima é sempre acompanhada de um programa de tratamento obrigatório."Este, sim, é o objectivo final da nossa proposta", sublinha Rafaela Fernandes.
"Se olharmos à realidade antes de 2000, a pessoa ia ao tribunal e, de alguma forma, havia ali um efeito persuasor muito mais eficaz do que uma pessoa se apresentar ao senhor guarda ou à comissão de dissuasão", verifica.Multa criminal acentua o risco de delinquência.
Totalmente contra a lei da criminalização do consumo de drogas está o juiz-presidente do Tribunal de Família e de Menores. Mário Silva considera que o agravamento das sanções pode produzir um efeito perverso e indesejado - aumentar a pequena criminalidade.
"A aplicação de multa criminal ou coima pode acentuar os riscos de aumento da pequena delinquência (criminalidade aquisitiva) e levar a que o pagamento seja cumprido à custa do património familiar ou de terceiros, frustando-se assim a sua finalidade pedagógico-ressocializadora", afirma Mário Silva, em declarações ao DIÁRIO. A tese de criminalizar o consumo terá poucas ou nenhumas repercussões aos mais variados níveis. "Basta atender aos critérios de diagnóstico de abuso de drogas para se compreender que a ameaça de consequências desfavoráveis, sejam judiciais, sejam sociais, económicas ou de saúde, não afasta o consumidor dos consumos, em nome do estado adicto e do hedonismo", observa Mário Silva.
O juiz-presidente do Tribunal de Família e Menores revela-se mais apologista da Lei nº 30/2000, de 29 de Novembro, por considerar que "o legislador escolheu a via da descriminalização construtiva, assente na consignação de uma intervenção preventiva, pedagógica e pré-clínico-terapeûtica".
Invocando o 'principio do mínimo de intervenção penal', o juiz entende que a criminalização do consumo de estupefacientes não se justifica por não ser um meio absolutamente necessário ou sequer adequado para enfrentar o problema do consumo de drogas e dos seus efeitos nefastos.
Sobre este mesmo assunto tentámos ouvir outro magistrado: Jaime Pestana, juiz do Tribunal Judicial do Funchal e presidente da delegação regional da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, que recusou se pronunciar sobre o diploma, pelo facto de não estar ainda aprovado.
Psicólogos divididos, PSP em silêncio
O comandante da PSP, Moutinho Barreira, usou este subterfúgio para evitar comentar a proposta de lei: "Não é ético discutir assuntos do poder legislativo". Também a psicóloga Manuela Parente, responsável pelo Centro de Acolhimento de São Tiago, uma das instituições de reabilitação social que mais trabalham na recuperação dos toxicodependentes, reserva-se ao direito de se pronunciar mais tarde: "Ainda não reflecti convenientemente sobre este assunto". Outro psicólogo contactado, este do Hospital do Funchal, mostra-se mais receptivo à lei de 1993 que criminaliza o consumo de drogas. "Pelo espírito da lei, não acho um retrocesso e pode mesmo ser uma evolução, já que a droga não pode ser compreendida como um problema apenas de saúde pública mas também um fenómeno social", analisa Emanuel Alves, que constata uma lacuna característica dos países latinos: "Confundimos sempre liberdade de direitos com menos responsabilização". O psicólogo crê que a proposta-lei virá disciplinar socialmente através da correcção individual.
O que dizem as leis?
A LEI pretendida (art. 40.º DL nº 15/93, de 22 de Janeiro)Quem consumir ou, para o seu consumo, cultivar, adquirir ou detiver plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 30 dias.
Se a quantidade de plantas, substâncias ou preparações cultivadas, detidas ou adquiridas pelo agente exceder a necessária para o consumo médio individual durante o período de 5 dias, a pena é de prisão até 1 ano ou de multa até 120 dias.
A lei em vigor (Art. 4.º Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro)As autoridades policiais procederão à identificação do consumidor e, eventualmente, à sua revista e à apreensão das plantas, substâncias ou preparações referidas no artigo 1.º encontradas na posse do consumidor, que são perdidas a favor do Estado (...).
Quando não seja possível proceder à identificação do consumidor (...), poderão as autoridades, se tal se revelar necessário, deter o consumidor para garantir a sua comparência perante a comissão, nas condições do regime legal (...).
CDT são "corpos híbridos" que cobram coimas
Desde que foi criada na Região, em 2002, a Comissão para a Dissuasão da Toxicodependência (CDT) instruiu 1.024 processos de contra-ordenação por consumo e posse de substâncias ilícitas. Este ano, perto de meia centena de indivíduos foi indiciada por consumo.
Se a lei social-democrata estivesse em vigor, este seria o número de indivíduos detidos e presentes a tribunal pelo crime de consumo de estupefacientes. A 'cannabis' e a heroína são, de longe, as drogas que mais andaram no bolso dos consumidores madeirenses. Entre 2002 e 15 de Abril último, a CDT abriu, respectivamente, 494 e 309 processos de contra-ordenação.
As autuações são remetidas para a CDT, na Rua das Hortas, através dos órgãos de polícia criminal e do Ministério Público. Ainda que haja toxicodependentes indiciados, a maioria dos indivíduos são consumidores recreativos ou ocasionais.
Rafaela Fernandes, deputada do PSD, considera "caricata" a criação das CDT, quando já existe o Instituto de Reinserção Social que faz trabalho de acompanhamento. "As CDT são corpos híbridos que surgiram no sistema administrativo português no ano 2000 (com a entrada da lei que descriminaliza o consumo de drogas), a quem se transferiu poderes como se de um juiz se tratasse, sem que tenham poder de autoridade", aponta.
A deputada enaltece o trabalho das comissões, mas não deixa de criticar o governo pelo facto de não lhes ter concedido poder de autoridade. "Ao fim e ao cabo, (as CDT) acabam por ser cobradores de coimas que nem sequer podem arrecadar receitas porque os desgraçados (os toxicodependentes) não têm dinheiro para pagar".
Rafaela Fernandes verifica que, assim, "é um gozo para os toxicodependentes que andam por aí na rua".
Os NÚMEROS da droga
150.000A recolha de seringas nas farmácias aumentou 19% em 2007, na Madeira. Farmácias na Nazaré e na Camacha lideram.
700%
As 90.720 doses de heroína apreendidas na Madeira significam um aumento de 700% face a 2006.
204.752
Falando em quantidades, o haxixe foi a droga mais apreendida pelas autoridades policiais: 204.752 doses individuais.
1,5 ton.
A apreensão de 1,5 toneladas de cocaína no veleiro 'Blaus VII' foi uma boa fatia das 139.250 doses apreendidas.
8
Foi o número de alegados traficantes (quatro dos quais do sexo feminino), de 11 nacionalidades, detidos por tráfico.
120
As polícias apreenderam nove veículos e quase 218 mil euros em dinheiro suspeito de ser resultado do tráfico de droga.217.466Foi o número em 2007 directamente relacionado com o consumo de droga, revela o relatório do UCIC.
48
É o número de reclusos que cumprem penas de prisão por tráfico de droga, ou seja, 14% da população reclusa.
Ler noticia integral em Dário de Noticias da Madeira, de 20-04-2008.

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