sábado, setembro 16, 2006

Maus tratos em menores

"As crianças acham tudo em nada, os homens não acham nada em tudo”.
Leopardi, Giacomo.
Apesar de estarmos no século XXI é crescente o número de crianças e jovens vítimas de maus tratos. As definições de maus tratos variam consoante as visões culturais e históricas sobre a criança e seus cuidados, com os direitos, as regras sociais e os modelos explicativos da violência. De uma forma genérica, os maus tratos podem ser definidos como qualquer forma de sofrimento físico e/ou emocional, não acidental e inadequado, resultante de disfunções e/ou carências nas relações entre crianças ou jovens e pessoas mais velhas, num contexto e numa relação de responsabilidade, confiança e/ou poder. Pela maneira reiterada como geralmente acontecem, privam o menor dos seus direitos e liberdades afectando, de forma concreta ou potencial, a sua saúde, o seu desenvolvimento (física, psicológico e social) e/ou a sua dignidade. Classicamente os maus tratos são divididos nos seguintes tipos:
Negligência: constitui um comportamento regular de omissão do responsável pelo menor em lhe proporcionar a satisfação das necessidades básicas para o seu desenvolvimento. A negligência pode significar omissão em termos de cuidados básicos como a privação da higiene, alimentação, segurança, educação, saúde, afecto, estimulação e apoio. Deste comportamento tem que resultar um dano na saúde e/ou no desenvolvimento físico e psicossocial do menor. A identificação da negligência tem que ter em consideração os recursos disponíveis pelos familiares e cuidadores e as dificuldades sócio-económicas da população. Inclui diversos tipos como a negligência intra-uterina, a falta de supervisão da criança que tem como resultado lesões e acidentes de repetição, o não cumprimento do calendário das vacinas, a frequência irregular à escolar, a má higiene, a desnutrição, além da mendicidade e do abandono.
Maus tratos físicos: corresponde a qualquer acção intencional, não acidental, por parte dos pais ou pessoa com responsabilidade, poder ou confiança, que provoque ou possa provocar dano físico no menor. O dano físico pode traduzir-se em lesões físicas de natureza traumática, doença, sufocação ou intoxicação. A “síndrome de bebé sacudido” é uma forma especial deste tipo e consiste em lesões cerebrais que ocorrem quando a criança, em geral com menos de 6 meses, é sacudida. O mesmo se diga em relação à “síndrome da criança espancada” que se refere a crianças de pouca idade, que sofreram ferimentos “inusitados”, fracturas ósseas, queimaduras, etc, ocorridos em épocas diversas, bem como em diferentes etapas e sempre explicadas pelos pais de forma inadequada e inconsistente e à “síndrome de Munchausen por procuração” que pode ser definida como a situação na qual a criança é trazida aos cuidados médicos devido a sintomas inventados ou provocados pelos seus responsáveis. São exemplo deste tipo a administração de substâncias que causam sonolência ou convulsões.
Abuso sexual: traduz-se pelo envolvimento do menor em práticas que visam a satisfação sexual do adulto ou de outro jovem que está numa posição de poder ou de autoridade sobre aquele. Estas práticas são impostas ao menor pela violência física, por ameaças ou pela indução da sua vontade. Para além da prática de relações sexuais são também exemplo deste tipo de abuso a obrigação de tomar conhecimento e presenciar conversas ou escritos obscenos, espectáculos ou objectos pornográficos, ou actos de carácter exibicionista e a utilização do menor em fotografias, filmes ou gravações pornográficas.
Maus tratos psicológicos: constitui um acto de natureza intencional caracterizado pela ausência ou inadequação, persistente ou significativa, activa ou passiva, do suporte afectivo e do reconhecimento das necessidades emocionais do menor. Podem manifestar-se através das mais várias formas, como insultos verbais, humilhação, ridicularização, desvalorização, hostilização, desrespeito, ameaças, indiferença, discriminação, rejeição, depreciação, abandono temporário, culpabilização, punição exagerada, críticas e envolvimento em situações de violência extrema e/ou repetida, como é o caso da violência doméstica. Todas estas formas de maus tratos psicológicos podem causar danos no desenvolvimento biopsicossocial do menor e na estabilidade das suas competências emocionais, com consequente diminuição da sua auto-estima.
Exploração económica: apesar de nem sempre aparecer incluída nas tipologias dos maus tratos, está legitimada a sua inclusão pelo facto da Convenção sobre os Direitos da Criança expressamente impor aos Estados Partes a obrigação de reconhecerem à criança o direito de ser “protegida contra a exploração económica ou a sujeição a trabalhos perigosos ou capazes de comprometer a sua educação, prejudicar a sua saúde ou o seu desenvolvimento físico, mental, espiritual, moral ou social”(artigo 32º).
Nos termos da lei portuguesa, os menores vítimas de maus tratos têm duas formas de protecção: a protecção tutelar assegurada fundamentalmente pela Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Risco (Lei n.º 147/99, de 1 de Setembro) destinada a proteger a criança ou jovem que esteja em perigo e a protecção penal que para a continuar a proteger, responsabiliza o maltratante. No primeiro caso, e nos termos do n.º 2 do artigo 3º da citada lei “uma criança ou jovem está em perigo, quando, designadamente, se encontra numa das seguintes situações: a) Está abandonada ou entregue a si própria; b) Sofre maus tratos físicos ou psíquicos ou é vítima de abusos sexuais; c) Não recebe os cuidados ou afeição adequados à sua idade e situação pessoal; d) É obrigada a actividades ou trabalhos excessivos ou inadequados à sua idade, dignidade e situação pessoal ou prejudiciais à sua formação ou desenvolvimento; e) Está sujeita, de forma directa ou indirecta, a comportamentos que afectem gravemente a sua segurança ou o seu equilíbrio emocional; f) Assume comportamentos ou se entrega a actividades ou consumos que afectem gravemente a sua saúde, segurança, formação, educação ou desenvolvimento, sem que os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto se lhes oponham de modo adequado a remover essa situação”. No segundo caso, as situações passíveis de configurarem maus tratos em crianças e jovens estão previstas nos artigos 138º (Exposição ou abandono), 152º (Maus tratos) e 172º a 176º do Código Penal (que abrangem o abuso sexual de menores, o abuso sexual de menores dependentes, os actos sexuais com adolescentes, os actos homossexuais com adolescentes, o lenocínio e o tráfico de menores).
Finalizo, dizendo que só o empenho e colaboração das várias instituições competentes nesta área, das próprias crianças e jovens, das suas famílias, dos educadores, dos vizinhos e da população em geral permitirá proteger efectivamente os menores das situações de maus tratos.
MÁRIO RODRIGUES DA SILVA

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