domingo, fevereiro 19, 2006

"Papás multibanco" acreditam que dinheiro substitui afectos

Fonte: Diário de Noticias, de 19-02-2006


Partia vidros, fabricava bombas artesanais, falsificava as notas. Bernardo procurava sempre situações limite. Possuía tudo o que podia ser comprado com dinheiro. Não tinha a atenção dos pais, empresários que estavam ocupados a ganhar dinheiro. O filho cresceu no meio de criadas. Aos 15 anos, a escola deixou de ter paciência para o aturar.

"É um tipo de miúdo que, se não for agarrado a tempo pode entrar na marginalidade, no consumo de drogas. Porque isso representa entrar num caminho onde não há limites", explica a psicóloga Andreia Moniz.

O Bernardo foi um dos seus doentes mais difíceis. Motivo de uma educação centrada no bem-estar físico. A atenção, o carinho e a partilha de experiências em família foi substituída por bens de consumo. É o pior exemplo dos efeitos dos "papás multibanco", uma definição de Victor Cerqueira, formado em Ciências de Educação. É professor e o que vê?

"Vejo alunos com telefones de última geração. Roupas de marca. Os pais demitem-se da sua função, que é definir regras, impor limites, exercer a autoridade. É mais difícil dizer 'não' do que 'sim'". Tende-se a substituir isso pelo multibanco, muitas vezes com sacrifício", explica. O termo surgiu depois de dizer que solução para os problemas de um jovem seria abrirem uma conta e darem-lhe um cartão multibanco. Um aluno não percebeu a ironia e disse: "Isso mesmo!"

"Os pais de hoje têm tão pouco tempo para os filhos que estes deixam de ser uma prioridade. Têm sentimentos de culpa e acabam por compensar com as coisas materiais. Como se assim pudessem substituir os afectos", acrescenta Andreia Moniz, responsável pelo gabinete de psicologia Psicodam e onde Victor Cerqueira prepara outros profissionais para lidarem com estas situações.

Mudanças.

Hoje, as pessoas têm menos tempo, sobretudo os que vivem em Portugal, diz a socióloga da família Maria das Dores Guerreiro. "Somos o país em que se consome mais tempo fora de casa, tanto no trabalho como nos transportes. Temos a semana de 40 horas, o que já não acontece em muitos países da UE, e há sectores com cargas horárias muito díspares. Temos a maior taxa de actividade das mulheres a tempo inteiro. Ambos os membros do casal trabalham e investem no bem-estar da família. Para dar aos filhos o que não tiveram.

"A sociedade evoluiu muito, "mas passou-se do 8 para 80, a todos o níveis. Passou-se de uma disciplina rígida para a ausência de disciplina", acrescenta Victor Cerqueira.

O bem material surge para compensar a ausência, o abandono. Há também quem superproteja a criança, resolvendo-lhe os obstáculos e comprando-lhe tudo. Mas, alertam os técnicos, quando a situação se torna um problema é porque existem outros pontos críticos. A terapia começa com o filho e acaba na família.

E até a ida ao psicólogo começa por ser uma forma de "comprar" a resolução de um problema. "Os pais do Bernardo pagaram para alguém lidar com o filho. Disse-lhes que eles é que tinham de tomar uma decisão", conta Andreia Moniz. O rapaz chumbou e os pais mandaram-no para um colégio interno em Espanha nas férias. Foi castigado. Ouviu muitos nãos. Demorou três anos para perceber que viver em sociedade implica regras e que nem tudo pode ser comprado. Aprendeu a lidar com limites e a frustração de não ter tudo.

A partir da adolescência, a terapia tem que ser feita quase exclusivamente com o doente. «Chamamos a atenção dos pais para o que não devem fazer, mas trabalha-se a maturidade do jovem. Explica-se que tudo o que faça tem implicações na sua vida. No final, já era o Bernardo que dizia aos pais o que estavam a fazer de errado com a irmã mais nova." Isto para que o jovem não chegue à idade adulta com um comportamento de criança. E, como a birra já não consegue um emprego, uma promoção, acaba por sentir-se frustrado.

Pedro, sete anos, desafiava tudo e todos. Só obedecia com tareia. "Parece que gosta de apanhar", dizia a mãe, com quem vivia desde os dois anos. Os pais eram divorciados. A irmã, mais velha era bem diferente. Ao Pedro faltou a autoridade paternal, uma característica comum a crianças com este tipo de comportamento. O que também acontece quando o progenitor passa pouco tempo em casa. Os pais tinham dificuldades financeiras para lhe darem tudo o que queria. Foi uma professor que aconselhou a ida ao psicólogo. O Pedro entrou no consultório sem cumprimentar, embirrou que não ficava com a psicóloga, depois que não brincava com os objectos próprios da terapia. Andreia Moniz explicou-lhe que a consulta tinha 30 minutos e ou aproveitava para brincar ou continuava aos gritos. Houve também um trabalho com a família. São os pais que têm de arranjar alternativas de comportamento. Estar com eles. Dizer "não" quando é preciso, explicando-lhes porquê. O Pedro era outro ao fim de ano e meio.

O pediatra Mário Cordeiro diz que estes exemplos não fazem a regra. "A parentalidade é vivida hoje de uma maneira como nunca foi em gerações anteriores. Talvez por isso, os pais se sentem angustiados quando sentem que não são tão bons como desejariam", defende.

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