"Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo", diz o n.º4 do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa (CRP). Mas o tempo médio de resolução das acções deixa muito a desejar. Há casos em que a Justiça é mais lenta e outros mais célere. O que é intolerável é que haja encobrimento de falhas à custa da ideia da 'maturação' das decisões. E não é só a morosidade que é causa de incumprimento constitucional. O princípio da equidade, igualmente consagrado no artigo 20.º da CRP, está a ser violado.
A culpa deve ser repartida por todos os operadores judiciários (advogados, procuradores, órgãos de polícia criminal, solicitares, funcionários judiciais, juízes, liquidatários, etc.) mas também pelo legislador (Assembleia da República e Ministério da Justiça). São reformas atrás de reformas, leis e suas revogações que encurtam ou alargam prazos ao sabor dos critérios políticos e das conjunturas.
São factores endógenos e exógenos (externos ao funcionamento dos próprios tribunais) que determinam a resolução mais rápida ou mais lenta dos processos. O cumprimento de prazos legais (garantísticos) é, desde logo, indicador da 'vida' do processo. Por outro lado, ele depende de inúmeros impulsos processuais, alguns deles (acções ou omissões) imputáveis mais às partes do que ao aparelho de Justiça. Tantas vezes através de expedientes dilatórios 'para ganhar tempo' a roçar a má-fé processual.
Além disso, muitas vezes são as garantias processuais (por exemplo, citar ausentes/emigrantes em processos de inventário - às vezes através de edital) que ditam o adiamento do processo. São direitos, liberdades e garantias que urge salvaguardar, às vezes em prejuízo do factor tempo (investigação, petição/acusação, notificação/citação, contestação, instrução, pronúncia, decisão e por aí fora).
Depois são os recursos (da 1.ª instância até ao Supremo ou ao Tribunal Constitucional) que determinam a conclusão do caso. Quando não há repetição de julgamentos por nulidades ou porque a audiência não ficou ou ficou mal gravada. E depois do fim dessa cadeia de recurso (justiça deliberativa) há que mover um novo processo (executivo) para concretizar o que determinou a decisão deliberativa. E há quem diga que a acção executiva (criação da figura do solicitador de execução) está, hoje, mais demorada, mais cara, mais ineficaz.
Para que um credor queira reaver verbas inferiores a 400/500 euros não vale a pena recorrer aso tribunais: perde tempo e dinheiro. Aconselha-se os meios alternativos (por exemplo, Julgados de Paz) incluindo o 'cobrador do fraque' (cobranças difíceis). Os processos de insolvência (falências de empresas) são outro tormento burocrático. São penhoras/arrestos, vendas públicas, etc. Perde a Economia e, em última instância, toda a sociedade.
Para emperrar a máquina existem ainda outros 'grãos de areia' como a crónica falta de funcionários nos tribunais (os poucos que existem não conseguem dar vazão às muitas acções), sistemas informáticos, videoconferência, gravação de audiências, notificações de réus e testemunhas (algumas devolvidas), adiamento de diligências atribuíveis a falta de recursos humanos ou materiais.
Isto para não falar da cooperação judiciária internacional (ou da falta dela); da eventual má distribuição dos tribunais (de competência genérica ou especializada), sobrecarregando alguns com processos e aligeirando outros; das orgânicas desajustadas da realidade social e económica onde os tribunais estão implantados.
Depois há que distinguir os ritmos das várias Justiças (criminal, civil, administrativa, fiscal, laboral, de família e menores) cada uma com as suas especificidades. Cada uma regida por inúmeras regras e códigos que impõem prazos e, grosso modo, distinguem processos cautelares e processos 'ordinários'. Acresce que a própria Justiça fixou para si (qualificou) processos do género processos urgentes (menores, embargos de obras novas, apreensão de veículos), processos sumários, processos abreviados, processos sumaríssimos.
Morosidade pode ser legal, organizacional ou provocada
Para o juiz Mário Rodrigues da Silva, "deve distinguir-se a duração necessária do processo ('o prazo razoável' necessário à defesa dos direitos individuais e colectivos dos cidadãos) da morosidade ou seja, toda a duração irrazoável ou excessiva do processo desnecessária à protecção das partes intervenientes".
No entendimento do magistrado, a morosidade pode ser legal (a que resulta do excesso de formalismo); organizacional ou endógena ao sistema judiciário (a que resulta do volume de serviço e/ou rotinas adquiridas, bem como da organização dos tribunais); e morosidade provocada (a que é criada pelos actores judiciários - magistrados, advogados, partes, polícia, peritos, funcionários judiciais, etc.).
Como causas gerais da morosidade, Mário Rodrigues aponta, entre outras 20 razões essenciais: As más condições de trabalho; deficiências na distribuição de funcionários judiciais e de magistrados, cujos quadros nem sempre estão completos e que se agravam com as comissões de serviço, doenças prolongadas, licenças de maternidade e com a sua constante mobilidade; volume de trabalho (explosão da litigiosidade-litigação de massa); recursos a perícias nos hospitais, Instituto de Medicina Legal e Polícia Judiciária que atrasam os processos durante anos.Também é apontada a demora de entrega de relatórios sociais e dos exames pedopsiquiátricos na justiça de menores; expedientes dilatórios (ex: recursos "injustificados"); solicitações de adiamentos, faltas a diligências e requerimentos de suspensão de instância "para chegar a acordo"; não cumprimento atempado das cartas precatórias e especialmente das cartas rogatórias; interesse do devedor em atrasar o andamento das execuções; inexistência de tribunais especializados em várias áreas do território nacional; complexidade processual ou substantiva dos processos; alta intensidade do litígio; e dificuldades em citar e notificar as partes, testemunhas e outros intervenientes.
Também se aponta o dedo à ausência de informação centralizada; não funcionamento dos tribunais em rede e a ausência de mecanismos expeditos de comunicação; dificuldade de acesso a informações bancárias com fundamento no sigilo bancário; dificuldade de acesso a informações clínicas com fundamento em sigilo médico; burocratização dos procedimentos processuais; alterações legais e divergências na jurisprudência; excesso de garantismo traduzido no excesso de possibilidades de reclamações e de recursos; e dificuldades na venda judicial dos bens e nos descontos dos vencimentos.
Estudo: Três anos e meio para resolver inventários
São tramitações que tramam. Um estudo da Universidade Nova de Lisboa revela que, em 2003, na Região, os processos de inventário, casos de heranças, demoraram, em média, 40,91 meses (perto de três anos e meio) a serem resolvidos. Média que se manteve em 2004 (40,93 meses). Os dados constam de um estudo sobre a Justiça Cível (247 páginas) apresentado em Janeiro de 2008. Dados que dizem que, em média, em 2003, os processos cíveis foram resolvidos, na RAM, em 17,52 meses. Média que subiu em 2004 para 20,56 meses.
O estudo revela ainda que, nos tribunais de competência genérica do Círculo Judicial do Funchal, em matéria cível, a taxa de litigância (número de processos judiciais entrados por 1.000 habitantes) era de 5.19 em 2003 e baixou para 4.31 em 2004. No que toca às acções declarativas, o estudo revela que elas demoraram, em média, 13,44 meses a serem resolvidas, em 2003, no Círculo Judicial do Funchal. Média que aumentou em 2004 (13,73 meses). Ao nível dos processos de acção executiva (cobrança de dívidas) eles demoravam em média, no Funchal, 19,95 meses a resolver em 2003. Em 2004, a espera média, no Funchal, aumentou para 27,94 meses.
Relativamente a processos de falência e recuperação de empresas (aumentaram muito nos últimos tempos) a média, na sua resolução, na Região, foi de 5,5 meses em 2003 e de 7,9 meses em 2004. Estima-se que estes valores estejam, actualmente, desajustados da realidade.
Sobre processos de divórcio, no Tribunal de Família e Menores do Funchal (TFMF), o estudo detectou valores atípicos ('outliers'): os processos declarativos levaram, em média, 5,96 meses a serem resolvidos neste tribunal, em 2003, e 7,06 meses em 2004. Também no TFMF, a acção executiva foi mais célere (3,21 em 2003 e 3,0 meses em 2004). E ainda 20,14 meses em processos de inventário (2003) e 15,52 meses em 2004.
A comparação da taxa de congestão dos processos cíveis (número de processos pendentes no início do ano dividido pelo número de processos finalizados nesse ano), colocou o Tribunal Judicial do Funchal, em 2003, no meio da tabela dos tribunais de 1.ª instância portugueses (taxa de 1.43 que subiu para 1.78 em 2004).
Particularmente no TFMF, a taxa de congestão era de 0.90 em 2003 e passou para 1.05 em 2004. A taxa de litigância na Região, em matéria cível, foi de 5,19 processos por mil habitantes em 2003 e 4,31 em 2004. O tempo de coser processos à linha não está assim tão distante A notária Teresa Perry Vidal faz da Justiça a sua profissão. Mais na vertente da Justiça 'do consenso' (Conservatórias, Notariado) do que na Justiça de barra de Tribunal (contencioso).
Para Perry Vidal há vários factores que determinam a morosidade da Justiça. Desde logo a legislação. "As leis antigas eram morosas, as novas são mal feitas", sintetizou. E o drama é que existe o princípio geral de obediência às leis, mesmo as mal feitas.
Na área de Notariado e Conservatórias as coisas estão a melhorar porque foram feitos investimentos. A privatização dos Notários obrigou a isso (até foi adquirido um sistema informático a Espanha) e o próprio Estado apostou na modernização administrativa dos serviços que ficaram sobre a sua alçada.
Contudo, há factores que ainda emperram a celeridade dos processos, como a não actualização do Cadastro e a burocratização de procedimentos. O caminho é a formação e cruzamento de dados (electronicamente).
Relativamente à Justiça dos Tribunais, Teresa Perry Vidal disse que o primeiro factor de morosidade foi a falta de investimento humano e técnico "que não se fez durante anos e anos". A desmaterialização dos processos ainda é uma utopia. "Há cinco anos ainda se cosiam os processos com uma linha e uma agulha... parece que já não se faz assim", disse. Depois, há a mobilidade judicial, a obediência a prazos legais (a Justiça precisa de uma certa ponderação) e a busca da verdade que obriga a mil e uma diligências. "É difícil conciliar a simplificação dos actos, a celeridade e a segurança jurídica", rematou.
Vários Organismos atentos
Atentos à situação da morosidade estão vários organismos. Desde logo o legislador, Assembleia da República (vários partidos); o Ministério da Justiça; Procuradoria-Geral da República; Câmara dos Solicitadores; Ordem dos Advogados (OA); Conselhos Superiores (do MP da Magistratura); Conselhos de Oficiais de Justiça (COJ); Provedoria de Justiça. Mas também o Observatório Permanente da Justiça; o Instituto Nacional de Estatística (INE); Associação Sindical dos Juízes Portugueses; Associação de Juízes pela Cidadania; Sindicato dos Magistrados do MP; Sindicato dos Funcionários Judiciais; Associações profissionais dos órgãos de polícias (PSP, GNR, SEF, PJ, Guardas Prisionais); Tribunal Europeu dos Direito do Homem; Comissões (por exemplo, 'Justiça e Paz').
Opiniões: Porque demoram os processos?
Marques de Freitas, procurador jubilado Há excesso de garantias dos arguidos (processo penal) em comparação com as vítimas; o processo cautelar está a ser utilizado até à exaustão (administrativo).
José Prada (filho), ordem dos advogados Falta de meios humanos e materiais, reformas falhadas (ex.: férias judiciais), mobilidade de juízes, secções únicas/genéricas, prioridade de processos.
Danilo Pereira, Sindicato funcionários judiciais Dificuldades nos tribunais (instalações, pessoal, sistemas informáticos); acumulação de serviço; abuso das garantias (expedientes dilatórios) para retardar decisões.
Brício Araújo, associação jovens advogados Quantidade de processos (muitos deles bagatelas jurídicas); pouco trabalho de alguns funcionários e alguns magistrados; só quem tem de cumprir prazos são os advogados.
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