Já por várias vezes os jornais da nossa região publicaram manchetes do tipo “pai tenta recuperar filhos em tribunal”.
Estas notícias não podem deixar de suscitar a questão de se saber onde deve começar e acabar o direito de informar quando o assunto principal se relaciona com a vida privada das crianças.
Dispõe o n.º 1 do artigo 3.º da Lei n.º 2/99 de 13 de Janeiro que “A liberdade de imprensa tem como únicos limites os que decorrem da Constituição e da lei, de forma a salvaguardar o rigor e a objectividade da informação, a garantir os direitos ao bom nome, à reserva da intimidade da vida privada, à imagem e à palavra dos cidadãos e a defender o interesse público e a ordem democrática”.
E de acordo com as alíneas g) e h) do artigo 14.º do Estatuto do Jornalista (Lei n.º 1/99 de 13 de Janeiro alterada pela Lei n.º 64/2007 de 6 de Novembro) constituem deveres fundamentais dos jornalistas “Não identificar, directa ou indirectamente, as vítimas de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, contra a honra ou contra a reserva da vida privada até à audiência de julgamento, e para além dela, se o ofendido for menor de 16 anos, bem como os menores que tiverem sido objecto de medidas tutelares sancionatórias” e “Preservar, salvo razões de incontestável interesse público, a reserva da intimidade, bem como respeitar a privacidade de acordo com a natureza do caso e a condição das pessoas”.
Segundo o n.º 1 do artigo 26.º da Constituição da República Portuguesa “a todos são reconhecidos os direitos à reserva da intimidade da vida privada e familiar”.
Por outro lado, estipula o n.º 1 do artigo 80.º do Código Civil que “todos devem guardar reserva quanto à intimidade da vida privada de outrém”, acrescentando o respectivo n.º 2 que “a extensão da reserva é definida conforme a natureza do caso e a condição das pessoas”.
Esta reserva abrange a intimidade da vida privada, em particular a intimidade da vida pessoal, familiar, doméstica, sentimental e sexual, bem como outros aspectos da vida privada, como as reservas do domicílio, de correspondência, de dados pessoais informatizáveis, dos rendimentos patrimoniais, etc. A protecção da intimidade da vida privada abrange por exemplo as causas e as circunstâncias de um divórcio, a revelação não autorizada de adopção plena (cfr. artigos 1985.º e 1987.º do Código Civil), os critérios educativos paternos, as desavenças entre pais e filhos, entre parentes ou mesmo entre não familiares que não tenham decorrido publicamente ou que os interessados queiram manter reservadas.
Trata-se assim do direito de qualquer pessoa a que os acontecimentos íntimos da sua vida privada, que só a ela se referem, não sejam divulgados sem o seu consentimento.
Obviamente que este direito de personalidade tem limites, como sejam os acontecimentos da vida comum a qualquer pessoa, as actividades relacionadas com a vida pública, e as restrições legais, impostas por interesses de ordem pública.
Não é pois de estranhar que o direito de informação, por um lado e o direito à privacidade, por outro lado, colidam. Quando tal se verifica importa ponderar os interesses em causa, devendo observar-se sempre o princípio da dignidade humana.
Porém, quando se trata de menores a protecção tem de ser mais alargada, tendo em vista evitar que a sua identificação os possa marcar social e psicologicamente.
Na verdade, nem na perspectiva da ordem jurídica nacional, nem na internacional, o direito à privacidade sofre qualquer limitação ou sequer atenuação em função da idade.
No plano nacional, há que ter em atenção ainda ao disposto nos artigos 4.º, al. b) e 90.º da Lei de Promoção e Protecção de Crianças e Jovens em Risco (Lei n.º 147/99 de 1 de Setembro).
Artigo 4.ºb) Privacidade — a promoção dos direitos e protecção da criança e do jovem deve ser efectuada no respeito pela intimidade, direito à imagem e reserva da sua vida privada.
Artigo 90.º:
1. Os órgãos de comunicação social, sempre que divulguem situações de crianças ou jovens em perigo, não podem identificar, nem transmitir elementos, sons ou imagens que permitam a sua identificação, sob pena de os seus agentes incorrerem na prática do crime de desobediência.
2. Sem prejuízo do disposto no número anterior, os órgãos de comunicação social podem relatar o conteúdo dos actos públicos do processo judicial de promoção e protecção.
3. Sempre que tal seja solicitado e sem prejuízo do disposto no n.º 1 o presidente da comissão de protecção ou o juiz do processo informam os órgãos de comunicação social sobre os factos, decisão e circunstâncias necessárias para a sua correcta compreensão.
No plano internacional, temos o n.º 1 do artigo 16.º da Convenção sobre os Direitos da Criança de 20 de Novembro de 1989 que dispõe:
“1. Nenhuma criança pode ser sujeita a intromissões arbitrárias ou ilegais na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou correspondência, nem a ofensas ilegais à sua honra e reputação.
2. A criança tem direito à protecção da lei contra tais intromissões ou ofensas”.
Finalizo, dizendo que optando os meios de comunicação social pela publicação de notícias relativas a menores em processos judiciais devem empenhar-se em reduzir ao máximo o risco de exposição das crianças, o que tem de passar pela não divulgação da imagem e dos nomes verdadeiros que permita a sua identificação.
Texto publicado no Jornal da Madeira, de 19-10-2008.
Sem comentários:
Enviar um comentário