quarta-feira, março 05, 2008

Paternidade sócio-afectiva


“Acreditar que basta ter filhos para ser um pai é tão absurdo quanto acreditar que basta ter instrumentos para ser músico”.
Mansour Chalta

Recentemente ganhou foros de discussão a questão da prevalência da paternidade biológica ou da paternidade sócio-afectiva.
Na maior parte dos casos os três tipos de paternidade — biológica, registral e afectiva — coincidem, existindo porém, alguns casos em que as mesmas se verificam isoladamente ou combinadas duas a duas.
De início e com vista a proteger a família e o casamento, a nossa lei estabeleceu a presunção “pater is est”, que estabelecia a paternidade jurídica do marido (vd. Artigos 1796.º, n.º 2 e 1826.º, n.º 1 do Código Civil).
Porém, com a descoberta do exame de ADN, surgiu a possibilidade de se investigar a verdadeira paternidade biológica. E com o objectivo de fazer corresponder a paternidade jurídica com a biológica e, em respeito ao princípio constitucional de que todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei (vd. artigo 13.º, n.º 1 da CRP), o julgador passou a dar mais valor à verdade biológica, admitindo que o filho, possa reconhecer sua verdadeira filiação por intermédio da propositura de acção de investigação de paternidade (vd. Artigo 1869.º do Código Civil).
Por outro lado, devido a uma série de factores, as relações familiares ganharam um novo dinamismo e complexidade, surgindo cada vez mais situações de crianças que afastadas dos seus pais biológicos, passaram a relacionar-se com outras pessoas que em termos práticos assumiram o papel de pai e mãe.
Surgiu assim a designação de paternidade sócio-afectiva que significa o tratamento dispensado a um filho, por alguém, independentemente de imposição legal ou vínculo sanguíneo; fruto apenas dos sentimentos de carinho, afecto e amor.
Para esta nova definição de paternidade, pai não é apenas a pessoa que gera e que tenha vínculo genético com a criança. Ser pai é antes de tudo, a pessoa que ama, cria, educa, protege, alimenta uma criança, enfim a pessoa que realmente exerce as funções próprias de pai, sendo este considerado como tal por esta criança, de acordo com o seu superior interesse.
Como exemplos práticos de paternidade afectiva podemos citar a adopção, a inseminação artificial heteróloga, o caso de um homem que vivendo com uma mulher regista como seu um filho desta, trata e cuida dele como seu filho e todas as situações em que os pais biológicos abandonam os seus filhos, entregando-os a terceiros que cuidam deles como seus filhos.
A partir deste ponto, começou-se a falar de uma desbiologização da paternidade; termo este introduzido pelo Professor da Faculdade de Direito de Minas Gerais João Batista Villela em 1973, quando lançou o seu livro com o título “A Desbiologização da Paternidade”.
Hoje em dia, podemos afirmar que existe uma forte corrente de opinião que entende que deve ser reconhecida à paternidade sócio-afectiva a mesma importância que a paternidade biológica ou jurídica.
Bem a propósito, destaco a iniciativa recente do Instituto de Apoio à Criança (IAC) de elaborar um documento, que deverá ser subscrito por várias personalidades, e que pretende chamar a atenção para a necessidade de concretizar melhor na lei o conceito de superior interesse da criança, bem como introduzir o direito à preservação de relações afectivas.
O próprio Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) não considera a paternidade biológica, desprovida de factores adicionais (a relação afectiva, o cuidado diário da criança e a responsabilidade financeira), como uma relação familiar protegida pelo artigo 8.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos. Mesmo quando entende que os Estados violam os direitos dos pais biológicos, tem sido jurisprudência uniforme do TEDH que os direitos parentais não podem ser exercidos à custa da criança, não envolvendo, por isso, a desintegração das crianças da família afectiva em que se encontram, nem direitos de visita coercivos dos pais biológicos. Os direitos dos pais cessam quando começam os direitos da criança ao livre desenvolvimento, ao bem-estar psicológico e à estabilidade.
Finalizo, dizendo que no Direito de Família não há regras absolutas. Cada caso deve ser analisado, diante das circunstâncias apresentadas, com as suas especificidades.
Mário Rodrigues da Silva

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