Enquanto juiz presidente do Tribunal de Família e Menores, como é que encara toda esta problemática em torno de casos como os da Esmeralda ou da família de acolhimento que ficou sem uma criança que cuidava desde os primeiros dias de vida? É necessário alterar a legislação, por forma a defender as famílias adoptivas e de acolhimento?
Mário Silva — João Baptista Vilela, professor na Faculdade de Direito da UFMG escreveu que “O amor está para o Direito da Família como a vontade está para o Direito das Obrigações”. A partir desta frase direi que os casos acima citados, assim como outros semelhantes terão que necessariamente dividir as opiniões, sejam elas provenientes de juristas ou não.
Sobre as decisões, não me posso pronunciar por força do dever de reserva que o meu estatuto profissional (Estatuto dos Magistrados Judiciais) me impõe de não fazer declarações ou comentários sobre processos.
Destaco porém a iniciativa recente do Instituto de Apoio à Criança (IAC) de elaborar um documento, que deverá ser subscrito por várias personalidades, e que pretende chamar a atenção para a necessidade de concretizar melhor na lei o conceito de superior interesse da criança, bem como introduzir o direito à preservação de relações afectivas.
Esta Iniciativa parece ir de encontro à jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) que não considera a paternidade biológica, desprovida de factores adicionais (a relação afectiva, o cuidado diário da criança e a responsabilidade financeira), como uma relação familiar protegida pelo artigo 8º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.
Mesmo quando entende que os Estados violam os direitos dos pais biológicos, tem sido jurisprudência uniforme do TEDH que os direitos parentais não podem ser exercidos à custa da criança, não envolvendo, por isso, a desintegração das crianças da família afectiva em que se encontram, nem direitos de visita coercivos dos pais biológicos. Os direitos dos pais cessam quando começam os direitos da criança ao livre desenvolvimento, ao bem-estar psicológico e à estabilidade.
Acresce dizer, que por força do Decreto-Lei nº 11/2008, de 18 de Janeiro ficou claro que as famílias ou pessoas candidatas ao acompanhamento de crianças não podem ser candidatos à adopção.
Finalizo esta questão, dizendo que no Direito de Família não há regras absolutas. Cada caso deve ser analisado, diante das circunstâncias apresentadas, com as suas especificidades.
JM — Diariamente, são noticiados casos de violação e de maus tratos a menores. Na Madeira, o problema é também preocupante? Quantos casos de violações e de agressões a menores foram julgados e quantos arquivados o ano passado? E nos dois anos anteriores? É verdade que a maioria dos crimes são perpetrados por familiares?
MS — Segundo o relatório do Centro de Pesquisa Innocenti do UNICEF apresentado em Novembro de 2007 mais de 20 mil crianças morrem todos os anos nos países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico), das quais 3.500 são vítimas de maus tratos. Infelizmente, em 2006 Portugal não integrou o grupo de cinco dos 21 países-membros da OCDE (Espanha, Grécia, Itália, Irlanda e Noruega) com as mais baixas taxas de mortalidade infantil por maus tratos.
Em um de Janeiro de 2007 encontravam-se pendentes no Tribunal de Família e de Menores do Funchal 253 processos de promoção e protecção, deram entrada durante o ano 138 processos e foram declarados findos 268 processos. Estes processos tiveram origem em primeiro lugar por situações de negligência, seguindo-se o abandono e insucesso escolar, as agressões físicas e psíquicas e por fim os abusos sexuais.
A propósito dos abusos sexuais que é um dos tipos de maus-tratos mais grave, segundo dados recentes da Associação de Mulheres Contra a Violência (AMCV), 60% dos abusos acontece dentro de casa do abusador ou da vítima, pelo que nem sempre manter os menores em casa e afastados de estranhos é a melhor forma de os proteger. Aliás, segundo a AMCV, entre 75 e 85 por cento dos abusadores são membros da família da criança, seus amigos ou conhecidos.
Por fim, refiro que não disponho de elementos estatísticos sobre o número de processos criminais julgados em que os menores foram os ofendidos.
JM — Que campanhas, que programas, em suma o que se poderá fazer para que casos de violações e maus tratos diminuam para um nível o mais próximo do zero? Que mecanismos de protecção às crianças terão de ser criados?
MS — Os maus-tratos, a violência sexual, a delinquência e a educação dominam as notícias sobre crianças divulgadas pela comunicação social portuguesa, concluiu um estudo do Centro de Investigação Média e Jornalismo que foi divulgado em Novembro de 2007. Surge assim a ideia na opinião pública de um grande aumento do número de casos, o que não corresponde totalmente à verdade. O que se passa é que cada vez mais as pessoas têm consciência dos direitos das crianças e denunciam as situações de maus tratos.
Se é possível diminuir o número de casos de maus-tratos através de uma maior atenção e intervenção técnica nas situações, não podemos ter a ilusão de que alguma vez alcançaremos um nível próximo do zero. Só numa sociedade perfeita.
Finalizo, dizendo que é fundamental que a comunidade continue a ter um papel preventivo e interventivo, sobretudo na denúncia de situações de risco, abuso, exploração e negligência das crianças. E para isso são importantes todas campanhas, nomeadamente junto da comunicação social, pelo seu grande impacto.
JM — Têm sido também notícias os raptos de crianças, se bem que no caso Maddie haja muitas dúvidas. Estamos perante uma rede internacional? O que se poderá fazer para proteger as nossas crianças e evitar situações como as da pequena Mari Luz?
MS — Não gostaria de especular sobre casos com a repercussão pública dos acima referidos.
Cumpre-me apenas recordar que o artigo 1878º do Código Civil sob a epígrafe “Conteúdo do poder paternal) dispõe que “Compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los, ainda que nascituros, e administrar os seus bens”, o que implica necessariamente que os pais exerçam o direito/dever de vigilância sobre os seus filhos.
JM — Em relação às famílias madeirenses, quantos casos de agressão doméstica foram julgados e quantos arquivados nestes últimos anos? O álcool continua a ser o maior "causador" dos problemas?
MS — Não disponho de elementos estatísticos relativamente à Madeira. Porém, segundo dados fornecidos em Novembro de 2007 pela PSP relativamente ao nosso pais, das 9.218 denúncias de violência doméstica ocorridas desde Janeiro de 2007, 6.618 diziam respeito a violência contra o cônjuge, as outras (343) foram relativas a agressões a menores de 16 anos e (703) a idosos. Um outro estudo apresentado pela Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género também na mesma altura, revelou que 39 mulheres portuguesas foram mortas pelos maridos em 2006 e que 43 ficaram gravemente feridas. A violência doméstica não é um problema exclusivo dos nossos dias, mas antes a sua prática atravessa ciclos históricos, quadrantes político-ideológicos, países, religiões, culturas, idades e estratos sociais.
Quanto às suas causas são as mais diversas: consumo excessivo de bebidas alcoólicas e de estupefacientes, deficiências mentais e desequilíbrios de personalidade, muitos dos agressores foram vítimas de maus-tratos na infância, ou pelo menos assistiram a episódios de violência entre os pais; problemas emocionais ou de comportamento (ex: depressão, insegurança, dificuldades em gerir a frustração, baixo controlo dos impulsos, pobre assertividade, poucas competências comunicacionais) e ainda os factores contextuais (ex: separação), isolamento familiar e social.
JM — Em casos de separação, quem mais sofre são os filhos. Normalmente, são entregue às mães. Como é que vê o papel dos pais nesta situação? E como analisa a entrega de crianças aos pais, como aconteceu não há muito tempo no norte do país, que acabam por morrer?
MS — Nas últimas décadas assistiu-se a uma escalada de conflitos familiares no que respeita à guarda dos filhos e regulação das visitas.
O número de processos em que se discute a guarda dos filhos continua a ser «residual» no Tribunal de Família e Menores do Funchal, apesar de haver cada vez mais homens a quererem cuidar dos filhos.
Nos termos da lei, há igualdade entre os progenitores para a guarda da criança, sendo que a decisão judicial deve ter em consideração os interesses do menor, o principal beneficiado com o exercício do poder paternal.
Quando há que decidir a qual dos progenitores deve ser atribuída a guarda do menor, o processo de decisão começa por uma selecção negativa, isto é pela procura de aspectos a apontar frontalmente contra a atribuição da guarda a um dos pais.
Sendo ambos os progenitores capazes de educar a criança, a escolha deve recair sobre o progenitor que seja a “figura de referência” para a criança.
O dever de reserva impede-me de responder à parte final desta questão.
JM — Como vê o roubo de um computador de um juiz em plenas instalações de um tribunal? Que mecanismos importa introduzir para corrigir estas situações?
MS — Começo por lamentar o sucedido, relacionando-o com um problema actual grave que é o da segurança dos magistrados, funcionários e demais utentes dos tribunais, assim como das próprias instalações. A este propósito recordo um estudo elaborado pela ASJP que detectou graves falhas de segurança em quase todos os tribunais. Como é sabido compete ao Ministério da Justiça, juntamente com as forças de segurança, elaborar e implementar planos de segurança para os tribunais.
JM — O Governo quer alterar o mapa judiciário e criar apenas uma comarca na Madeira. Concorda com as alterações preconizadas?
MS — Creio que a reforma do mapa judiciário e da organização dos tribunais é necessária e inevitável para uma melhor eficiência do sistema de Justiça. Porém, é também necessário que o novo mapa territorial dos tribunais não seja obstáculo ao efectivo acesso dos cidadãos à Justiça. A fazer fé nas declarações recentes do senhor ministro da Justiça nenhum dos tribunais existentes será extinto. No caso da Madeira e de acordo com o que acima referi concordo que a Madeira passe a ter uma única comarca.
Registo como positivo a criação da figura do administrador de tribunal e do juiz presidente da comarca a ser nomeado pelo Conselho Superior da Magistratura com o alargamento de poderes face aos actuais poderes dos juízes presidentes dos tribunais, o qual passa a ter funções de gestão e a responsabilidade por dirigir o tribunal. Realço o facto do juiz presidente não interferir na esfera de actuação jurisdicional ou processual dos juízes.
Uma palavra final para a substituição da designação de tribunais de família e de menores por juízos de família e de menores cuja competência territorial será alargada a toda a circunscrição (comarca).
JM — Que balanço faz à Justiça em Portugal? E na Madeira?
MS — É inegável que vivemos um momento em que a Justiça está na primeira página, sendo a sua morosidade a falha mais apontada.
Hoje espera-se muito dos tribunais, exigindo a sociedade que eles sejam cada vez mais rápidos e eficientes e quando isso não acontece, a opinião pública tende a apontar culpas a quem na maioria das vezes faz o seu melhor, apesar dos mais diversos condicionalismos, sendo ainda certo que em muitos casos a morosidade dos processos se fica a dever aos próprios intervenientes processuais e à colaboração tardia de entidades externas.
Para melhorar a imagem da justiça junto dos cidadãos é necessário que estes sejam informados de forma clara e simples sobre o funcionamento das instituições e, particularmente, sobre a forma como é administrada a justiça, devendo os tribunais colaborar com a comunicação social no esclarecimento da sua actividade, até onde lhes permitir o dever legal de reserva e o segredo de justiça.
Ler noticia integral em Jornal da Madeira, de 28-01-2008.
Ler noticia integral em Jornal da Madeira, de 28-01-2008.
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